A Amazônia é um território onde a espiritualidade se entrelaça à vida cotidiana e à natureza. As manifestações religiosas e culturais expressam modos de existir profundamente marcados pela ancestralidade, pela convivência com o sagrado e pela resistência simbólica dos povos que habitam a região. Nas festas, nas encantarias, nos brinquedos e nos rituais, a fé e a cultura se misturam, constituindo uma memória viva que desafia os limites entre o material e o espiritual.
Esta curadoria propõe um mergulho nas múltiplas formas de religiosidade amazônica — católica, afroindígena e pentecostal — para revelar como o sagrado se manifesta nas relações com a terra, com os corpos e com as tradições. Cada item selecionado traz uma narrativa própria, mas todos partilham o mesmo gesto: o de afirmar a potência simbólica e a complexidade espiritual da Amazônia.
Relações de Poder, Gênero e Raça nas Representações Sociais
Entre as cores do miriti e as festas de liberdade em Belém, a Amazônia revela como as tradições também são arenas de disputa. Em Abaetetuba, o universo do brinquedo de miriti reflete uma divisão de papéis marcada por gênero: homens cortam e modelam, mulheres pintam e finalizam. No entanto, uma artesã-chefe rompe essa lógica ao assumir todas as etapas do fazer — corta, pinta, cria — e transforma o trabalho em gesto de afirmação. Ao produzir casais homoafetivos e reinventar as formas tradicionais, ela desafia a normatividade e reinscreve no miriti novas possibilidades de corpo e existência.
Em Belém do século XIX, as festas do abolicionismo também revelavam disputas simbólicas. Sob o discurso da caridade e da fraternidade, a elite idealizava o negro como “bom cativo”, apagando as lutas e resistências reais. O corpo negro era celebrado apenas como figura dócil, enquanto batuques, sambas e capoeiras eram condenados como sinais de desordem.
Entre a artesã que transforma o miriti e os libertos representados nas festas, há um mesmo gesto de resistência: ambos reinventam o lugar do corpo dentro da tradição. Nessa travessia, o fazer artístico e a celebração pública tornam-se modos de afirmar identidades e reescrever histórias.

Tradição e Festividades na Amazônia Paraense
Na Amazônia paraense, a vida pulsa em ritmo de festa. Entre rios e cidades como Belém, Abaetetuba e Bragança, a cultura se reinventa continuamente por meio de rituais que misturam fé, arte e convivência. Cada celebração é uma forma de manter viva a memória e de renovar os laços que unem o sagrado ao cotidiano.
Em Belém, o Círio de Nazaré transforma a cidade em um grande rio de devoção. A procissão, reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil, é mais do que uma manifestação católica: é o coração simbólico da identidade amazônica.
Entre os devotos, o brinquedo de miriti, vindo das ilhas de Abaetetuba, flutua pelas ruas como oferenda e poesia — um artefato leve, feito de fé e de infância, que também ganha protagonismo no Miritifest, ondea tradição é celebrada e reinventada como espetáculo de pertencimento.
Em Bragança, o Dia da Iluminação, celebrado no Dia de Finados, ressignifica o luto e transforma o cemitério em espaço de afeto. É o dia em que as famílias se reúnem para visitar seus mortos, reacender velas e partilhar lembranças — um rito silencioso que reafirma a continuidade entre a vida e a morte.
Já as Festas do Abolicionismo, ocorridas em Belém entre 1881 e 1888, traziam outro tipo de ritual: o da liberdade em forma de caridade. Organizadas pela elite, eram apresentadas como celebrações de fraternidade e harmonia social, mas também marcadas por tensões e disputas de memória. Mesmo assim, nelas ecoava o desejo popular de transformar a libertação em festa — e a festa, em afirmação de vida.
